sábado, outubro 1

Os dias de Alberto


O relógio marca as cinco da manhã, aliás como acontece em outros dias, seja que horas forem.
“Nunca mais compro relógios com fontes luminosas no Palácio do Oriente Chinês”, pensa Alberto, estendido nos lençóis, enquanto abre os olhos ainda pegados pela espessa ramela amarela.
Afinal, são cinco da manhã, dois minutos e trinta segundos. Alberto consegue guiar-se com precisão pelo sol graças ao seu treino militar na 1.ª Companhia.
“Por onde andas tu Castelo Branco? Nunca mais fui o mesmo desde o dia em que trocaste todo o pelotão pelo Cabo Fernandes. Tu que eras o único capaz de enfiar uma rolha na boca da Romana”, matuta. Os pensamentos sucedem-se a ritmo um esquizofrénico, quase tão alucinante como as inaugurações em tempo de autárquicas.
Autárquicas traz à memória a palavra “governo”, e isso é algo de que Alberto nem quer ouvir falar. Ainda se lembra bem de como o abandonaram, de como tinha sido apagado do mapa. Alberto tinha perdido o bilhete de identidade, no entanto, para ele, o gajo aciganado que lhe tinha roubado a carteira no 50, a caminho de Algés, estava com o… GOVERNO.
Agora não há tempo para essas coisas. É preciso preparar mais um dia de luta contra o crime. Alberto finalmente levanta-se, abre a persiana e então apercebe-se que afinal não se guiou pelo sol, mas talvez pela luz do candeeiro.
“Paciência, também só entro à tarde”, diz. É preciso vestir a farda. Lá está ela pendurada na cadeira, à espera que Alberto a incorpore, qual Linda Reis.
Já a veste há anos e parece cada vez mais justa. Alberto está cinco quilos mais gordo. Recentemente até aderiu à moda das dietas anunciadas na televisão. Já experimentou três ou quatro, mas cada vez que se lembra da alegria de Valentina Torres há um pensamento que ping-pongueia entre os seus ressacados neurónios: “Alberto, vê a alegria da Vivi e ela tem mais 100 quilos do que tu. Ainda não é o momento para te entregares a esses vícios propagandeados”.
Então Alberto inspira profundamente, aperta a barriga e veste as calças. Está na hora de tomar o pequeno-almoço. Prepara um reforço suplementar de Cerelac, enquanto faz um zapping fervoroso na Tv da cozinha.
“Dzzzzzzt…Sic…Sic…Sic dez horas..dzzzzzzzt…Picolé traz a avó de hoje dzzzzt….oh si cariño, me gusta…oh sí te quiero dientro de mí Ramon. Ah mama mi poya, ahhhhhh…”, os espasmos nos dedos e a romena com sotaque espanhol, não o deixam mudar de canal, mas Alberto lá arranja forças e segue mais um dígito:”dzzzzzzzt… três lojas de brinquedos foram assaltadas no espaço de cinco dias…”
“Se fosse no meu horário de trabalho e na minha zona estavam bem tramados esses larápios, malandros. Isto cada vez está pior, é a crise”, dispara Alberto, entre uma e outra colherada de Celerac. Mas nada corre bem, a papa ficou grossa demais. Aliás, como fica ele todas as sextas feiras à noite quando bebe para esquecer as desgraças. A vida é madrasta com Alberto. A profissão dá-lhe cabo do resto da sanidade mental que a Júlia Pinheiro não levou durante as galas das expulsões. Alberto vive sobre a corda bamba, num perigo constante. Tem de estar sempre atento, de auricular no ouvido e olhos de lince, porque dele depende a segurança de milhares de inocentes. Cidadãos comuns, que passam por ele e desconhecem os perigos que se escondem por trás de uma porta, ou não fosse Alberto o segurança da entrada sul do Shopping lá da terra.

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